Entrevista de Hugo Rocha a Miguel Figueira para a revista SufPortugal
Para começar, gostava de perguntar de que forma estiveste envolvido na implementação do CAR de Montemor-o-Velho?
Tive o privilégio de estar envolvido em todas as fases deste processo: na elaboração do programa, na coordenação do projecto, e por fim no acompanhamento da obra. Este projecto foi desenvolvido no município por uma equipe interna que tive a honra de chefiar e que contou, desde a primeira hora, com um envolvimento muito forte da comunidade desportiva, não só a nível institucional (Secretaria de Estado do Desporto, Federações Nacionais e entidades reguladoras internacionais), mas também dos nossos atletas a quem a infra-estrutura se destina.
Sendo o CAR de Montemor dedicado a vários desportos (canoagem, remo, natação de águas livres e triatlo), quais foram as principais preocupações subjacentes à construção e implementação deste projecto? Como chegaram a essas conclusões?
A principal preocupação é servir bem o fim a que se destina. Neste caso este objectivo divide-se na resposta ao nível da valorização territorial e no serviço ao desporto de alto rendimento nas modalidades que procura servir. Se no primeiro objectivo o que distingue a qualidade da intervenção se prende com uma correcta leitura e análise do território, maturada ao longo de anos de reflexão em torno do vale e do rio, no segundo o factor distintivo que mais terá contribuído para o desenvolvimento do projecto foi o alargado nível de participação dos interessados, com destaque para as parcerias internacionais onde também fomos buscar algum know-how e para os atletas nacionais que lhes fazem o contra-ponto e a crítica. O facto de estarmos a trabalhar modalidades com alguns dos programas mais esclarecidos para o alto rendimento naturalmente que contribuiu de forma decisiva para a qualidade do processo de participação e consequentemente para o desenho da infra-estrutura. O direccionamento para o core - o plano de água e as respectivas estruturas de apoio ao treino - bem como o pragmatismo numa abordagem ao programa, centrado na perspectiva do baixo custo de utilização, acompanharam sempre o desenvolvimento do projecto.
Fala-me do sucesso e reconhecimento que o CAR de Montemor tem obtido, bem como dos factores que, a teu ver, têm conduzido a isso;
Apesar do entusiasmo que sentimos por parte dos utilizadores e da excelente receptividade que temos verificado nas grandes provas internacionais, é cedo para cantar vitória sobre este processo, até porque em larga medida o sucesso não depende só da qualidade da infra-estrutura mas também do seu modelo de gestão, que tarda a entrar em funcionamento. A infra-estrutura é uma ferramenta, um instrumento ao serviço dos programas das modalidades para o alto rendimento, que independentemente da sua qualidade própria, pode ser bem o mal usada.
Ainda assim no plano das vantagens comparativas no quadro global, destacaria algumas inovações que, em grande parte, surgem por via dos constrangimentos orçamentais e do aproveitamento das condições naturais, reconhecidas como avanços neste tipo de infra-estruturas de classe olímpica. Mas talvez um dos argumentos mais fortes desta pista seja o da sua localização, por causa do clima, já que as modalidades que serve têm uma forte expressão no norte da Europa onde o acesso à água, em grande parte do ano, fica muito condicionado. Os factores naturais nestes desportos de outdoor fazem toda a diferença e no quadro do surf esta relação é ainda mais evidente, já que temos ainda que integrar outro elemento natural: o mar.
Passando para a temática dos CARSurf, começaria por perguntar se tens conhecimento dos moldes em que estes foram estruturados?
O conhecimento que tenho sobre os CARSurf é o que me chega através da comunicação social e duma breve passagem por Peniche. Sei que o programa que suporta estes centros é o mesmo que suportou o de Montemor e que também terá tido o envolvimento da federação a que se destina. Aqui terminam as semelhanças, em tudo o resto aparentemente é diferente. Pelo menos assim parece evidenciar o resultado...
Quais são essas diferenças que notas ? Qual é a tua posição sobre essas diferenças, enquanto surfista e arquitecto com experiência na matéria?
A diferença mais substantiva é que no CARSurf falhámos o core - que neste caso são as ondas e as estruturas de apoio ao treino. Aquilo que me parece é que este programa se resume a pouco mais do que um bed and breakfast. Parece-me absurdo que o maior investimento de dinheiros públicos alguma vez direccionado para o surf não tenha contemplado qualquer verba para a valorização das ondas e da orla costeira, sendo certo que é esse o nosso palco. Como surfista não percebo como é que se trocam ondas por camas ou equipamento de ginásio por mesinhas de cabeceira, e como arquitecto também não.
No caso de Montemor todo o investimento público foi direccionado para o core. Naturalmente que o alojamento e as refeições também têm que estar disponíveis, mas isso é resolvido com a oferta local; não faz muito sentido ter os dinheiros públicos a suportar actividades concorrentes com as que estão instaladas.
As opções das federações com que trabalhei têm uma lógica de funcionamento oposta à da Federação de Surf, preferem receber o dinheiro do estado e negociar com os privados do que esgotar o orçamento na manutenção de um centro de dormidas. No caso do surf, que funciona em contra-ciclo com a sazonalidade do turismo sol-mar, ainda mais se justificaria não optar por encargos fixos desta natureza. Tal como o triatlo não pode dispensar o treino de altitude no México ou a canoagem o treino com terapia de frio na Polónia, o surf não pode dispensar a Indonésia ou o Hawai, pelo que na gestão das obrigações das federações se deva priorizar os objectivos direccionados às opções de treino dos atletas.
Qual consideras que deveria ser a função/objectivo dos CARSurf? E de que modo tal poderá ser atingido?
O objectivo principal de qualquer CAR é o do desenvolvimento do desporto de alto rendimento, como o próprio nome o evidência. Se queremos pensar noutros objectivos então vamos arranjar outro nome, porque este obviamente não serve.
Sobre o equipamento dos CARSurf tive conhecimento sobre uma discussão acerca da possibilidade de aquisição de pranchas. Um absurdo completo que só pode vir de uma decisão mal informada. Então alguém acredita que os atletas vão treinar sem as suas pranchas? Era o que mais faltava! Se quiserem fazer contratos-programa com o shaper de cada atleta eles certamente que agradecem, agora despejar pranchas nos CARSurf não faz qualquer sentido. Em Montemor os únicos barcos que foram comprados foram os barcos a motor para apoio ao treino e às provas. Porque é que não fazem o mesmo com o surf? As motas de água até nos davam muito jeito... Já o equipamento de ginásio, relaxe e massagem, ou material de vídeo, são equipamentos transversais ao treino de alto rendimento na grande maioria das modalidades, como também é transversal a necessidade de equipes de apoio multidisciplinar para a optimização do rendimento desportivo.
Não sei como nem quando é que este processo descarrilou, mas sei que só conseguirá entrar nos eixos com a abertura a uma maior participação dos atletas e da comunidade do surf, bem como com o contributo da experiência das outras modalidades com créditos no alto rendimento. Urge um esclarecimento sobre o que é um programa de alto rendimento, definir com rigor a diferença entre passear de bicileta e ciclismo, apanhar umas ondas ou ser atleta de alta competição.
Concordas com a localização dos CARSurf: Peniche; Nazaré; Aveiro; Viana do Castelo?
Não consigo perceber a fundamentação desta opção porque não sei qual é o modelo de funcionamento da Federação de Surf para o alto rendimento. Basicamente teríamos que optar por um de dois modelos: o da concentração num único lugar, que apesar das minhas reservas até poderia justificar o investimento nas camas, porque obriga à deslocação dos atletas para uma permanência fora da área de residência (como é o caso do triatlo ou da canoagem), ou o da dispersão no território, onde o treino é mais suportado pelos clubes sem deslocar os atletas, sendo que neste cenário não são necessárias as camas em regime de permanência, uma vez que os estágios são de carácter pontual. Ora o modelo do CARSurf parece ser o da dispersão, mas com camas em regime de permanência. Isto eu não percebo como é que funciona...
Tens conhecimento do Modelo de Gestão preconizado para os CARSurf? Qual é a tua opinião sobre o mesmo?
Conheço a Proposta de Modelo de Gestão e Financiamento para os CAR que destaca a especificidade do surf pelos piores motivos. Para além da diferença em relação às outras modalidades que apostam na concentração de recursos, o surf distingue-se ainda por ser o único caso onde se avança com a premissa da autosustentabilidade abrindo porta à demissão de responsabilidades por parte da administração central, designadamente no que concerne a futuros apoios. Pelo mesmo documento ficamos também a saber que se prevê um total de 280 mil euros de encargos fixos e que a Federação de Surf se prepara para a implementação de um plano comercial, assente na promoção internacional e alicerçada na cooperação desportiva além fronteiras, associando a marca “Portugal”. Se a isto juntarmos o facto de que, na identificação dos CAR, se tenha adoptado a designação de Surf Camp, receio que estejamos a trocar o objectivo do desenvolvimento desportivo do surf nacional pelo do desenvolvimento turístico a piscar o olho ao mercado alemão. A manter-se este cenário, mesmo que este venha a ser um negócio lucrativo do agrado da senhora Merkel, será sempre por conta do prejuízo para o alto rendimento no surf em Portugal.
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